Adelsin
No quintal da memória
“O quintal é o espaço do sonho para a infância acontecer. Porque ali a gente tem liberdade, os elementos da natureza e uma experiência coletiva e ao mesmo tempo individual. Cada criança, para crescer, precisaria de um quintal.”
Quando pensa na infância, Adelson Fernandes Murta Filho, mais (ou só) conhecido por Adelsin, lembra o quintal de sua casa, onde inventava máquinas voadoras. A natureza e a liberdade eram suas companheiras. Já crescido, Adelsin resolveu passear por outros quintais e observar o brincar das crianças. Há 20 anos voltou a morar cercado por árvores. Hoje, sua casa em Curralinho (MG) é aberta aos meninos da comunidade. Depois de tantas andanças pelo país, chegou à conclusão de que, para ter uma infância memorável, nada melhor do que um bom quintal.
Que menino você foi na infância?
Fui um menino da periferia de Belo Horizonte, do bairro Indaiá. Hoje a cidade vai muito além do bairro, mas, na época, era como se fosse um interior, havia poucas casas, era um bairro novo. Então, tive uma infância com muito verde, muito quintal, muita liberdade pra gente. As casas ficavam abertas, não havia roubo. Até os dez anos, tive uma infância muito livre. Depois, antes da adolescência, nos mudamos para um apartamento numa região central da cidade. E foi um impacto. Onde eu morava, tinha um contato muito íntimo com a natureza. No quintal lá de casa tinha seriguela, goiabeira, pé de amora, e tinha uma moita de bananeira. Eu pedia para os meus pais não cortarem porque eu usava como alvo para as minhas flechinhas, ficava treinando tiro ao alvo na bananeira.
O que você inventava nesse quintal?
Ali eu fazia meus desenhos, meus planos, meus projetos. Sempre gostei muito de desenhar o que eu vou fazer no futuro próximo, minhas invenções. Depois, embrulhava aquilo em plástico e enterrava no quintal. Minha mãe tinha um cantinho perto do muro onde plantava os temperos. Louro, coentro, cebolinha, salsa... Era ali perto que eu enterrava e fazia um mapa para encontrá-los. Devem estar enterrados lá até hoje.
E como foi a mudança para um apartamento?
Foi um choque muito grande. Primeiro, porque eu perdi a liberdade de movimentação e perdi também o contato com a natureza. Eu chorava toda noite. Foi um tempo de adaptação em que eu causei um sofrimento muito grande aos meus pais. Eu sofri muito. E aí eu fazia um papagaio, que a gente chamava de caixotinho ou gereba, que é uma dobradura de papel sem taquara, sem a vareta, e ia para a janela do apartamento e ficava soltando o papagaiozinho naquele corredor, no vento encanado que passava entre os prédios, no pouco céu que a gente tinha.
Quais foram as consequências disso?
Isso para mim foi muito importante. O que determinou o meu trabalho, essa dedicação a lutar pelo direito da criança de brincar e desenvolver a sua natureza, veio da experiência de ter perdido a minha infância. Foi por ter vivido com intensidade um tempo precioso e, depois, ter vivido a fase da dificuldade. Senti naquele momento que precisava fazer alguma coisa para transformar aquela realidade. Primeiro, a minha e, depois, a dos outros meninos.
Os brinquedos construídos pelos meninos de Minas Gerais, que você conhece bem, têm especificidades, comparados com os construídos em outros lugares do Brasil?
Os brinquedos daqui do centro de Minas, do centro para o norte, são muito parecidos com os brinquedos do sertão. Também pela questão geográfica e climática. Eles têm uma coisa da natureza e também sandália Havaiana cortada para fazer as rodinhas dos carros. Os brinquedos de cada lugar têm os movimentos que são comuns aos meninos de todos os lugares, mas a forma corresponde ao lugar. Em Minas, os brinquedos cantados do sul são mais líricos, os do norte têm mais movimento de corpo. Quanto mais se aproximam da Bahia, mais vão ficando dançantes, mais vivos. Na verdade, o impulso de brincar é igual em todos os lugares.
Que "lugar" é esse chamado "infância"?
A infância é um tempo muito especial, que começa ainda na barriga da mãe, onde já experimentamos uma série de sensações. Cada criança traz o sinal do novo, é o último passo da evolução da espécie. E, na convivência com outras crianças e com a natureza, todo esse impulso, toda essa natureza do ser humano aflora e o melhor da gente vem à tona. Quanto mais rica é essa experiência, mais a gente vai adiante. E mais a gente corresponde a essa expectativa de evolução da espécie.
Qual é o melhor espaço para a infância se desenvolver?
O quintal, para mim, é o espaço do sonho para a infância acontecer. Porque ali a gente tem liberdade, tem os elementos da natureza e tem uma experiência coletiva e ao mesmo tempo individual, que a gente precisa para crescer. Então eu acho que cada criança, para crescer, precisaria de um quintal.