Adriana Friedmann
Brincar na linha do tempo
“Nós não sabemos o que acontece de verdade quando as crianças entram no universo virtual. Ali eles usam muito a imaginação e a fantasia. Vivem mundos que perpassam o mundo concreto.”
A educadora paulistana Adriana Friedmann é coordenadora do Nepsid (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Simbolismo, Infância e Desenvolvimento) e pesquisou a evolução do brincar na cidade de São Paulo desde o início do século 20. Friedmann conta que hoje os formatos das brincadeiras são diferentes dos de outras décadas, mas elas são basicamente as mesmas. "O brincar é uma forma de expressão do ser humano."
Como era o brincar em São Paulo no início século 20?
No início do século, as crianças brincavam muito na rua, nos bairros e nos terrenos baldios, porque a cidade era mais segura e tinha mais espaço. Até os anos 50, as crianças não estavam na escola e tinham mais autonomia e liberdade.
Então formavam grupinhos de várias faixas etárias que se reuniam na rua para brincar sem a interferência do adulto. Era muito comum que os menores, os "café-com-leite", brincassem com crianças mais velhas.
Em que momento isso passou a ser diferente?
A partir dos anos 60, com a industrialização, as crianças começam a ir para a escola, e as brincadeiras na rua começam, aos poucos, a desaparecer. A cidade cresceu, diminuíram os espaços livres e verdes, as mães -já no mercado de trabalho- ficaram mais preocupadas com a segurança dos filhos. A isso se juntou o crescimento da indústria de brinquedos e a popularização da TV, que fez com que as crianças preferissem brincar em casa.
Como o passar do tempo interferiu no repertório de brincadeiras infantis?
O repertório das crianças do século passado, especialmente nos primeiros anos, vinha das culturas tradicionais e era mais ligado à natureza, com menos brinquedos e mais objetos, aliados à imaginação. A brincadeira tinha a ver com o espaço livre. Agora, as crianças vivem em um ambiente com muita informação que chega rápido e que eles não têm tempo de assimilar completamente. Por isso as brincadeiras têm muito mais a ver com mídia e tecnologia. Elas são mais rápidas, por exemplo.
Que elementos do brincar continuam os mesmos até hoje?
O brincar é uma forma de expressão do ser humano. Os formatos de brincadeira são diferentes, mas, no fundo, elas são as mesmas. As crianças continuam brincando de esconde-esconde, pega-pega como há décadas no interior, na floresta ou na cidade grande. A sagacidade e a perspicácia delas também são as mesmas, em quaisquer condições. Crianças obrigadas a trabalhar se viram para brincar, crianças sentadas na carteira da escola desesperadas para sair dali estão brincando na imaginação.
Por que as crianças ficaram mais solitárias?
Acho que sempre houve alguma solidão no brincar, mas antigamente o brincar coletivo era mais característico por causa das circunstâncias. Com o passar do tempo, as crianças ficaram mais sozinhas porque tinham menos permissão de ir para a rua e menos tempo de brincar na escola. Isso mostra como o brincar foi sendo estrangulado e elas foram -e ainda são- privadas dessa necessidade.
Qual o impacto desse isolamento no desenvolvimento das crianças?
Hoje, as crianças recebem tantos estímulos que a solidão não é completamente negativa. Ela também pode ser criativa e necessária para mergulhar em seu universo mais profundo. É saudável que elas brinquem também com seus amigos imaginários, seus brinquedos, que criem seus mundos. E é importante observar essas brincadeiras, porque elas são reveladoras.
O que a mediação do adulto, mais comum hoje, faz com a brincadeira?
A maioria dos adultos censura a brincadeira. Eles querem formatar, orientar ou conduzir a criança e têm dificuldade de aceitar que as brincadeiras de agora são diferentes daquelas do seu tempo. Mas também há os que entram na brincadeira. O meio-termo é aprender e, ao mesmo tempo, mostrar coisas novas. Às vezes, elas gostam; outras vezes, acham tudo ridículo. Mas, certamente, acabam fazendo releituras.