Gandhy Piorski
Brincadeiras no céu e na terra
“As crianças gostam de saber o que tem dentro, saber o que é a vida das coisas. E ela se manifesta no imaginário como uma coisa oculta, que está na entranha da matéria. Então, as crianças precisam quebrar, abrir, investigar. Porque o oculto é a alma de tudo.”
Água, terra, fogo e ar. Para o artista plástico Gandhy Piorski, que pesquisou os brinquedos dos meninos em 25 comunidades do Ceará, cada elemento sugere um brinquedo. E, para cada brinquedo, há um olhar, um movimento. A água é o estudo da simetria e o olhar para a natureza. A terra, o contato com a matéria, os pés no chão. O fogo sugere a explosão corporal, a adrenalina. E o ar traz a contemplação.
Como os quatro elementos da natureza guiam seu olhar sobre os brinquedos da infância? Como isso começou?
Um dia, lá na serra do Lajedo [no município de Maranguape, CE], numa brincadeira daquelas de fogueira, eu vi como os meninos interagiam com o fogo de uma maneira muito diferente do que faziam com outros materiais. Foi aí que percebi que poderia ser feita uma leitura muito menos do objeto e mais da imaginação das crianças. E, como a imaginação dialogava com a natureza e com o espaço deles, da comunidade. Quis expressar por essa linha, que tem como fundamento o pensamento do [Gaston] Bachelard, em que ele faz uma leitura dos quatro elementos e a expressão do imaginário nos poetas, nas artes. E aí comecei rapidamente a identificar os brinquedos de cada elemento.
Como são, primeiramente, os brinquedos ligados à terra?
Os brinquedos de terra, de fazendinha, caracterizam o universo da casa, da família, dos padrões de comportamento dos meninos que saem para cuidar do gado e das meninas que ficam fazendo comida. A maioria dos brinquedos da terra tem uma relação de investigação da matéria, no sentido de moldar, fazer boizinhos de barro ou pegar os caramujos e arrancá-los de dentro dos cascos para colocar para secar e brincar com as casquinhas, investigar o que está ali dentro. Ou até mesmo abrir os sapos e os calangos para saber a anatomia. Assim, surgem bolas de papo de peru, por exemplo.
E os brinquedos do fogo?
Eles já transmitem algo diferente. Não é tanto uma elaboração social, mas um sentido de engenho, de desafio, de experiência corporal. É o caso da brincadeira de pular corda, por exemplo, que no vocabulário tem muitos termos como "queimou" ou "foguinho". A explosão corporal também. Há uma tensão permanente ali na observação do movimento, a adrenalina. Existem também as brincadeiras de sombra, de lanternas e cineminha com vela. Os brinquedos do fogo são de transgressão, de roubar os fósforos da cozinha, o fogo da casa; eles se conectam com o mito do Prometeu. As crianças que mexem com fogo desafiam os medos, comunitários e próprios. Medo de se queimar, medo do escuro. Tem toda essa elaboração de superação própria.
Conte um pouco como são os brinquedos da água?
A predominância são os barquinhos ou as representações do que flutua, do que boia. Há as pescarias em que os meninos amarram garrafas PET para boiar, ou mais fundo no açude. E aí tem uma diversidade de brincadeira. Mas, nos barquinhos, tem muito o estudo da simetria e do equilíbrio em sua composição. É nesses brinquedos que os meninos começam a olhar para a natureza com mais discernimento. Buscando um estudo maior dos materiais que flutuam, que têm flexibilidade para suportar o peso do vento e da vela e não quebrem, tenham resistência. Das madeiras que são colocadas como pinos nos botes em vez de prego para não enferrujar. Os meninos também se ligam no movimento da natureza. Só podem colher a raiz do cajueiro, para fazer as bordas dos botes, na lua cheia. Isso porque é quando a seiva está toda espalhada na árvore, então tem pouca na raiz, e ela vai dar maior flexibilidade, poderão dobrar sem rachar...
Que tipos de barco os meninos constroem?
Fazem jangada, paquete, canoas com vela, botes, os maiores fazem barcos pesqueiros. Em regiões de praia brincar de barco é algo muito comum, faz parte do universo deles. É a história de vida dos pais. Passaram a infância construindo barquinhos em miniatura e depois se transformaram em carpinteiros navais. E os mais velhos ensinam os mais novos, que fazem barquinho de tudo, de sandália Havaiana, de casca de coco.
O que você percebe no imaginário deles com relação aos brinquedos do ar?
Eles exigem um olhar diferente. A visão se amplia, e o sentimento se modifica também. Assim como quando ele pega uma perna de pau, ele vê o mundo sob outra ótica. Ele sai do plano em que ele se encontra e amplia sua visão de mundo. As petecas também precisam de aerodinâmica para se mover. E tem toda a corporalidade de expansão. Tem as penas, os hábitos dos pássaros que eles começam a observar, os pássaros noturnos, os alimentos de que eles gostam. Eles gostam de observar os voos. Têm que fazer silêncio e observar. Nas brincadeiras do ar, os meninos contemplam mais do que criam e elaboram, como no caso dos brinquedos da terra. A natureza do jogo é solitária, vemos muitos meninos sozinhos se divertindo nas brincadeiras do ar. Enquanto a terra é um enraizamento social, o ar é um deslocamento social. Aí os meninos começam a estudar o movimento das alturas, das pipas, dos paraquedas.
E como é a relação das crianças e os bichos?
Algumas crianças brincam com os animais como participantes de um jogo, por exemplo. Tem uma história da canção (pássaro) de nome Fred que meninas (do Lajedo) criavam desde pequenininho. Elas treinaram o Fred para brincar de pega-pega. Em quem o Fred pousava este era o pega. Ou mesmo ainda existem os hábitos de brincar com as entranhas dos animais como fazendinhas de ossos de boi, bonecas de ossos de carneiro. Ou mesmo a caça de pequenos insetos, ou linhas amarradas nas patas de gafanhotos para controlá-los. Isto tudo não é lá do politicamente correto, mas a imaginação encontra seus métodos de expressão. O desejo imaginário quer ser expresso e é profundamente criativo. Por isso se apropria da natureza e engenha brincadeiras e brinquedos que nem sempre são tão inocentes. Mas dizem de um anseio da alma das crianças desde muito tempo.