Lydia Hortélio
Cultura da alma
“A cultura da criança é a cultura da alma. Os meninos têm a alma na frente. Depois é que ela vai pra dentro. Vai botando pano, papel, livro em cima.”
A etnomusicóloga e educadora Lydia Hortélio cresceu entre mangueiras no sertão da Bahia. De lá para cá, viu com pesar muitas árvores derrubadas, brincadeiras sendo esquecidas e a chegada da TV anulando os encontros de rua e o convívio das crianças entre elas mesmas na natureza.
Para a educadora, as crianças têm a "alma em frente". Com o tempo é que ela se esconde lá dentro. Diz que o tempo presente esqueceu a infância. Mas tem esperança. Sente no ar um desejo coletivo de mudança. E convida a todos a entrar na roda da memória.
Como foi sua infância?
Sou de Serrinha, sertão da Bahia, onde brincava-se muito. Tive a sorte de crescer num quintal de 25 mangueiras, muito grande. Meu pai viajava muito e gostava de trazer as frutas que encontrava, assim a gente tinha no sertão da Bahia um quintal que tinha até nêsperas! Minha mãe não gostava de deixar a gente "brincar na casa dos outros", por isso os meninos viviam lá em casa. Era um quintal cobiçado.
Quais eram as brincadeiras por lá?
Brincávamos muito de picula, de corda, cozinhado, passeávamos pelo quintal com sombrinha de folha de mamão, e, à tardinha, tomava-se banho e ia-se para a porta brincar novamente. De Roda, macaquinho, cinco pedrinhas... Sou capaz de me lembrar do som da pedrinha quando batia na outra na mão da gente. Eram dias completos. Hoje em dia falta pé no chão, espaço para correr, natureza. A gente brincava de tudo, então a cultura da criança se desenvolvia. A cultura da criança é a cultura da alma... Os meninos têm a alma em frente...
Como você vê a infância de hoje?
A gente esqueceu a infância. O Brasil não era assim. Pensava-se na infância. De repente, desde o aparecimento da TV, o convívio das crianças entre elas mesmas foi sendo desmontado aos pouquinhos. Não sei como vamos reverter isso, mas tenho esperança. Há um número significativo de educadores e jovens artistas aqui em São Paulo que estão buscando o Brasil e a infância com muito ardor. E esse desejo é tão sincero, que eu vejo chegar em breve uma virada como precisamos. Tenho grande esperança nisso.
Por que será que existe esse movimento neste momento?
Acho que é porque estamos com saudade de nós mesmos, do Brasil e da infância. Há um mal estar generalizado. O presente configura uma necessidade premente da natureza e do humano. Ou a gente acerta o passo ou não tem depois. É preciso restituir às crianças o espaço de natureza a que têm direito. Menino não corre, não sobe em árvore, não respira ar puro. As escolas são minipresídios, com exíguas salas de aula, recreios limitadíssimos, sem árvores e espaço para brincar. Mas sinto que este é também um momento eloquente, porque o "obstáculo é a alavanca". Sentimos um mal-estar muito grande, e isto anuncia, certamente, o restabelecimento de uma situação absolutamente inadequada, artificial, que já dura muito tempo, e há muita gente querendo mudar.
Qual é a importância da natureza no brincar?
Para favorecer o desenvolvimento da cultura da criança, a natureza tem um papel fundamental. A cultura da criança se tornou uma questão ecológica. Se você não permite o desenvolvimento da criança, não há futuro, a espécie tende a desaparecer. Hoje em dia, a primeira, a grande preocupação é com a preservação da vida. Precisamos levar os meninos a brincar na natureza!
É preciso uma volta aos quintais?
Sim, os meninos que moram nos apartamentos nem ao playground eles vão que, de resto, são tão pouco interessantes para as crianças. Elas hoje em dia ficam diante do computador a maior parte do tempo vendo aquelas animações estrangeiras, onde tudo é remetido aos olhos e à mente, às mesmas sensações planejadas por adultos que esqueceram a infância, não experimentam seu corpo e estão longe de viver o intercurso alegre e natural com seus pares. Por isso é necessário que venhamos a descobrir como fazer justiça às crianças, tirando-as dos condicionamentos em que vieram cair, buscando oferecer-lhes alternativas de convívio entre outras crianças na natureza. É uma questão inclusive de políticas públicas. É preciso trabalhar por uma conscientização ampla do significado e da importância do espaço de natureza para a vida da criança e o futuro do mundo.
Qual é a importância dos brinquedos musicais na infância?
Acho que a música tradicional da infância é a melhor forma de educação da sensibilidade. E ela deveria se iniciar nos braços da mãe, com uma canção de ninar. É neste momento que a criança ouve as primeiras palavras da língua e se inicia na língua mãe e na língua mãe musical, através da cantiga. Assim é em todas as culturas do mundo. É inestimável o valor do exercício espontâneo da música na infância, uma música onde a palavra, a cantiga, o movimento e o outro se interligam na alegria do brincar.