Selma Maria
Brincadeira roseana
“Os brinquedos de sensações fazem parte da natureza humana. Já os brinquedos invisíveis são aqueles que estão diante dos nossos olhos, mas só encontramos com atenção e observação.”
A artista plástica e educadora paulistana Selma Maria Kuasne coleciona bonecos, poesias, pedrinhas e brinquedos -visíveis e invisíveis. Sua pesquisa sobre a cultura da infância longe dos centros urbanos chegou até o sertão de Minas Gerais, onde cresceu o escritor Guimarães Rosa (1908 - 1967), nas cidades de Codisburgo, Morro da Garça e Três Marias.
Como é o brincar no sertão roseano?
As crianças dos vilarejos ali naquela região não conhecem muitas brincadeiras tradicionais. É como se os mais velhos tivessem vergonha de ensiná-las às crianças. Isso só começou a mudar nos últimos anos. Já no sertão mais profundo, o brincar antigo ainda se conserva. As crianças fazem rodas d´água com o buriti e flautas de arroz, abóbora ou mamão como as do tio Terês - personagem que Guimarães Rosa criou para o livro "Manuelzão e Miguilim".
Você encontrou muitas coisas parecidas com a época de Guimarães Rosa?
Encontrei muitos brinquedos dos quais ele fala em "Manuelzão e Miguilim", que conta a sua infância. As crianças ainda brincam com o "pirilampidário", que é uma lanterna feita colocando vaga-lumes em um frasco. Fazem petecas de bananeira, brincam com sabugos de milho, colocando-os na fogueira para fazer boizinhos pretos ou malhados. Fora os brinquedos que não são feitos de coisas. Guimarães chamava isso de "brincar de sentir".
Como são esses brinquedos?
Muitos deles eu criei a partir do que Guimarães falou. Quando eu li sobre o "brincar de pensar", entendi que há brinquedos que são da imaginação. Brincar de pensar é o que as crianças fazem quando ficam em cima das árvores conversando, vendo o mundo lá de cima e criando a filosofia. Se existe o brincar de pensar, também existe o brincar de olhar: desenhar no vidro embaçado, no carro empoeirado, olhar as estrelas, enxergar figuras nas nuvens.
De onde veio a ideia de criar o tratado de brinquedos para meninos quietos?
Em uma das poucas entrevistas de Guimarães Rosa, ele disse que tinha o sonho de escrever um livro sobre os brinquedos da infância dele, de menino quieto. Acho que a quietude e a contemplação fazem parte do ser sertanejo de qualquer lugar.
Eles lidam com o tempo de maneira diferente das pessoas nas cidades. Encontrei muitos meninos quietos como Guimarães e resolvi escrever o livro com as brincadeiras deles.
Como eram as brincadeiras do escritor?
Na mesma entrevista, ele fala que queria colocar no livro o brinquedo de formigas, que era "aprisionar formigas em pedras de ilhas e ficar fazendo pontezinhas para elas passarem". Essas pedras eram postas na água que saía do tanque das lavadeiras. Ali ele imaginava os rios e as cidades ribeirinhas. Isso ele chamava de "brincar de geografia".
E os brinquedos invisíveis?
São aqueles que estão diante dos nossos olhos, mas só encontramos com atenção e observação, como as pedrinhas do Morro da Garça. O morro é bastante íngreme e fica no meio de uma planície enorme. Nele tem pedrinhas que são dados perfeitos, resultado da explosão de uma grande pedra. Uma vez, subi o morro com várias crianças. Alguns deles não conheciam o lugar, porque fica distante da cidade. Mostrei para eles essas pedrinhas e começamos a brincar de geografia com elas. Nesse mesmo passeio, encontramos folhas muito furadas que, contra a luz, pareciam constelações. Dava para imaginar o céu, tamanha a quantidade de furinhos que as folhas tinham. Achei também um graveto que tinha a forma perfeita de uma onça.
Qual o papel da natureza no brincar sertanejo?
A relação das crianças do sertão com a água é muito forte, especialmente com os rios como o São Francisco. Elas usam o tronco do buriti, que é um isopor natural, como se fossem espaguetes de piscina. Toda criança sertaneja que mora perto de um rio aprende a nadar flutuando com esses troncos no corpo. Elas também têm uma relação muito forte com os peixes e os bichos, que também viram brinquedo. Até mesmo com a terra. Por causa do barro vermelho, elas já acordam pintadas. Quando vão dormir, já viraram índios.